Outubro Rosa: Questões emocionais ligadas ao câncer abordadas psicologicamente

Por Cláudio R. Garcia

Quando preparava o primeiro texto para contribuir com a campanha do Outubro Rosa minha ideia inicial era apenas trazer uma pequena informação sobre a psicossomática ligada ao câncer de mama e de colo do útero, mas se tratando de um tema tão delicado e tão complexo é preciso uma observação mais precisa.

A doença surge com uma mutação genética que altera o DNA da célula e são, na maioria dos casos, assintomáticos, isto é o sintoma não se manifesta rapidamente podendo protelar por mais de cinco anos. Em 2016 o Inca (Instituto Nacional de Câncer) apontou que 300,8 mil mulheres descobriram algum tipo de tumor, havendo 6,91 mortes para cada 100 mil pacientes. Segundo o mesmo instituto, o câncer de mama é o terceiro que mais mata no Brasil, sendo considerado raro antes dos trinta e cinco anos e possível após os cinquenta anos. 

O câncer na mulher não é limitado apenas as questões emocionais, há questões biológicas que causam outros fatores externos e internos que implicam o desenvolvimento da doença como por exemplo o fator hereditário, a qualidade da água e do ar, o ambiente em que se vive que é relacionado a exposição aos raios solares, químicas, radiação, substâncias tóxicas como níquel, arsênio e amianto, alimentos processados e industrializados como refrigerantes, farinha branca, álcool, pão de torrada (que ao ser exposto a alta temperatura libera acrilamida que causa tumores em seres humanos), o vírus de HPV contraído por sexo sem prevenção e causa câncer tanto no colo do útero quanto no ovário e vulva vaginal, hepatite B, anticoncepcional (uma pesquisa realizada pela Universidade de Copenhague, na Dinamarca, apontou que entre os 11.517 casos de câncer em mulheres o índice era muito maior na parcela de 20% que utilizavam a pílula a mais de cinco anos). O National Cancer Institute, nos Estados Unidos, mostrou que há incidência de câncer em mulheres que colocaram prótese de silicone, inclusive pacientes que já haviam se curado; segundo o Food and Drug Administration 70% dos casos foram de mulheres que colocaram a prótese esteticamente e 30% em pacientes pós câncer de mama.

O câncer uterino pode causar infertilidade, outro fator que está diretamente ligado ao surgimento de doenças psicossomáticas.

Há evidências no campo de psico-oncologia que comprovam que as emoções exercem um fator relevante no desenvolvimento do câncer feminino, geralmente na mama e no colo do útero.

Os altos níveis de stress, ansiedade, depressão, entre outros, afetam o sistema imunológico e facilita o desenvolvimento da neoplasia maligna, modificando o funcionamento das células, reduzindo a imunoglobulina e os linfócitos. O stress é um agravante na evolução do câncer, pois o excesso de stress faz o organismo liberar em excesso o hormônio cortisol que enfraquece o sistema imunológico.

A pesquisadora Carmen Maria Bueno Neme desenvolveu um estudo que aponta que mulheres com câncer de mama possuem maior dificuldade em lidar com mágoas, contrariedade, luto, solução de problemas e até mesmo em dividir seus sentimentos.

De acordo com Instituto Data Popular 54% das mulheres com histórico de câncer de mama apresentaram manifestações de tristeza, rancor e mágoas. O câncer na mama está relacionado com divórcio, separação de pessoas queridas e luto.

Os seios e o útero são pontos de energia vital, psiquicamente o seio representa doar vida, amor, o útero representa a geração e a continuidade, são mais do que pontos físicos sexuais. São as principais características físicas que diferem o homem da mulher. O câncer nessas regiões tem muito a falar sobre a qualidade de vida que as mulheres são inseridas, a sociedade que estão submetidas e como lidam com toda essa mudança.

Vivemos um tempo coletivo de agressividade, onde a mulher anula sua feminilidade e assume uma postura robusta, masculina, agressiva. Toda essa tensão que existe no mundo exterior acaba se somatizando e muitas vezes pode somar no feminino reprimido. Não é algo individual, pelo contrário, hoje mais do que nunca existe a mulher coletiva presente nas imagens, nos símbolos, nos papéis que estão se transformando. 

Na psicologia é importante observar não apenas o que está mudando, mas o que está sendo retirado e principalmente o que vai ser colocado no lugar. Historicamente e arquetipicamente, a mulher está na posição de matriarca e mãe que é provida a um longo tempo, atualmente ela está saindo dessa condição e está buscando colocação profissional, auto sustento, independência, o que não é ruim, pelo contrário se faz necessário, mas deve-se analisar o quanto essa mudança estrutural acomete estresse, ansiedade, agressão, depressão, movimentos de aceleração, e como a nova geração vai lidar com esses fatores para se adequar de forma saudável.

Um exemplo clássico arquetípico é a carta do tarot  que mostra a mulher segurando a boca do leão e representa a força, a força da mulher não é física (apenas) e sim a capacidade de reflexão, de controlar pela via emocional, de pacificar.

O mito de Sherazade fala como ela consegue criar uma conexão o Sultão Shariar que tinha apenas em seu propósito transar com mil mulheres e matá-las após o prazer sexual, como vingança por ter sido traído, se sentindo que seria sabotado e traído, como uma anima negativa sombria, e ele acaba decapitando as mulheres; Sherazade, que era bem elaborada com a referência do masculino, estabelece um vínculo com Sultão, contando histórias para ele durante a noite que despertava a curiosidade dele sobre o fim dos contos, e ela prometia que terminaria na noite seguinte. Assim, seguem mil e uma noites e após esse período o Sultão não só acaba apaixonado por ela, mas se cura integrando a sua anima, passa a confiar nela. Esse mito mostra como a força natural da mulher traz, através dos seus sentimentos, equilíbrio para a vida do homem, o yin yang. Em alguns contos falam que com o conhecimento que o Sultão adquire com Sherazade ele consegue vencer a guerra no reino, mostrando a importância e influência dessa mulher sobre a vida dele. 

O conto narrado na Bíblia também reforça esse arquétipo quando diz que a esposa ocupará o lugar da mãe, simbolizando a continuidade da espécie.

Assim como a carta e o mito que representam o arquétipo da mulher, é a manifestação do feminino que transforma o brutal em algo que liga, que conecta, que redescobre outras formas de se alimentar, de manifestar sentimentos e de obter controle, principalmente o autocontrole. São estruturas inerentes, presentes ao longo do tempo, além de concepções ideológicas, religiosas, filosóficas.

Toda mudança gera um desequilíbrio. Questiona-se: A substituição está fazendo bem? Se não está fazendo bem, está sendo bem feito? Como conciliar tudo isso? Esses são os conflitos diante da mulher moderna. Um extremo coloca ao lado completamente oposto e uma psique coletiva está surgindo para que saia do modelo “hadcore” entre ambos e seja alcançado o equilíbrio entre a mulher, a mãe, a conquistadora ativa, o afastamento da submissão. 

Quando o mundo passou pela escravidão, pessoas foram escravizadas independente de serem homens ou mulheres. Todos foram submetidos. Com a longa evolução, ambos conquistaram espaço financeiro, divisão de bens, acordo institucionais, hoje o homem também sofre com o desemprego, com falta de mercado de trabalho e lida da mesma forma que a mulher independente com a incapacidade de prover. A desestruturação financeira presente afeta coletivamente todos causando altos níveis de tensão, a mulher somatiza no que representa de mais feminino para ela. 

Os fatores psicossomáticos podem levar a dependência de drogas que é um objeto inanimado onde o self é projetado, como acontece com ídolos, astros famosos, na bebida, nos remédios., onde a pessoa projeta a vida naquilo, uma muleta psicológica.

A mulher sempre foi mais resistente a dor, como por exemplo no parto, sempre recorreu a chás de cura, remédios caseiros, ela lida bem com isso e supera rápido, mas isso não acontece por exemplo nos casos de aborto, onde a mulher se culpa inconscientemente e desenvolve diversas doenças emocionais e físicas em decorrência da psissomática, do trauma não elaborado, não integrado.

Nós enquanto cientistas, analistas, podemos mapear as reações e ter uma referência estatística dessas situações, mas não é uma receita de bolo e varia de caso para caso, cada caso é único. O inconsciente tem uma estrutura e leis próprias, que variam a cada paciente e com a base estrutural que ele traz. 

Por exemplo, muitas mulheres que tem problemas de autoestima tem uma questão autopunitiva inconsciente, ela não sabe o que é, apenas somatiza no mecanismo de autopunição. Alguns desses conflitos que a mulher enfrenta tem raiz numa infância traumática, onde a criança precisou enfrentar a agressão ou rejeição do objeto de amor, a imagem idealizada dos pais; acontece posteriormente o que o Jung fala que na segunda metade da vida, esse processo é elaborado, após passar o processo de tentativa de integração na adolescência onde ela cria rejeição dos pais. Muitos não elaboram, tentam adaptar o dinamismo psíquico com compensações nos relacionamentos, na busca desenfreada por aquele amor que nunca teve, a tentativa de elaborar a rejeição.

Uma vítima que está em um relacionamento abusivo, compensando de forma errônea essa falta, precisa analisar o que ambos, vítima e agressor, tem em comum, até onde há uma permissão ou uma privação, até onde um suga e é sugado, onde está a raiz do vínculo, quais são as regras sociais e emocionais que foram estabelecidas ali, o por que da falta de conversa que se tornou algo sombrio que não chega a lugar algum; como Rubem Alves diz sobre o relacionamento: “é jogar tênis ou frescobol“, ou vai medir, disputar e dominar o tempo todo ou haverá uma parceria para o jogo em conjunto. Um passo para libertação de um relacionamento abusivo é enxergar além do aspecto financeiro da sobrevivência, como cita a pirâmide de Maslow (necessidades fisiológicas, segurança, afeto, estima e as de auto realização).

A sociedade não tem valores morais para construir um eixo para colaborar com esses processos, a sociedade atual cria uma geração esquizo, com dificuldade de passar bons valores, boas referências, em entender o limite de certo e errado, de fronteiras e freios necessários.

Nós estamos sobrevivendo e não vivendo, considerando o nível de existência, viver é muito diferente de sobreviver, o humano é muito mais do que o ser e é muito bonito quando se pode desenvolver isso, o ser humano é como uma planta, precisa de condições para brotar e conseguir fazer grandes elaborações.

Ainda no tema da infância traumática, existem os casos de abuso sexual na infância que gera culpa, gera medo, gera transtornos psicológicos e doenças físicas, a vítima se sente culpada pelo objeto de amor ter provocado estímulos que não são de prazer, são orgânicos, quando a psique e o físico não estão prontos, são destruídos, violados, rompidos, é uma traição para vítima a figura de proteção a ter violentado. As vítimas precisam denunciar, precisam falar e colocar essa energia para fora, contando, denunciando, não estarão traindo quem traiu, estarão se libertando.

O quanto a somatização de um abuso reflete no câncer futuro? Uma pesquisa realizada pela psicóloga Bruna Amélia Moreira Sarafim-Silva revelou que a ocorrência de trauma na infância provoca alterações físicas que ocasionam o câncer de cabeça e pescoço, 95% dos pacientes com câncer relataram ter sofrido um trauma na infância. O caso de Lena Strickling se tornou muito conhecido após ela participar de um programa da ONG Make-A-Wish que concedia a realização de um desejo para pacientes, ela escolheu falar do abuso sexual infantil e ajudar outras pessoas com a sua história. Strickling tem dezoito anos e luta contra o linfoma de Hodgkin, ela e a irmã foram abusadas sexualmente pelo pai durante toda a infância, ela descreveu ao Collectively: “Ele encontrava um jeito de cometer o abuso mesmo na frente das pessoas. Ele nos cobria e fazia coisas, e eram todos os dias.  Eu me sentia como se estivesse doente o tempo inteiro. Suada, suja. O câncer nunca me incomodou tanto, comparando com o abuso sexual, que aconteceu e ainda me assombra, eu pensei em me matar, odiava a vida. Não me sentia nem um pouco amada. Eu fui diagnosticada com linfoma de Hodgkin, fui abusada sexualmente e sofri violência doméstica, mas tudo bem, porque a vida continua.”

Assista o depoimento

O stress e a depressão são sinais, precisa ser feito algo, algo está acontecendo, é onde entra a psicoterapia, a análise, para trabalhar a elaboração, a aceitação, entender o que de fato está ocorrendo e qual sua origem. Depressão não é frescura, chegar ao fundo do poço é um processo muito dolorido, mas lá podem ser fundados alicerces de superação, é preciso elaborar o fundo do poço para nascer o desejo de sair do estado de sofrimento. Muitas pessoas se encontram nessa condição por se tratar de manifestações inconscientes, coisas que não lembram mais, mas que estão ali sabotando, invadindo, gerando um complexo negativo que rouba energia do ego, toma parte daquilo é a vida, e não deve acontecer, é preciso elaborar e superar para alcançar o caminho da individuação, do autoconhecimento, onde é integrado o histórico de vida e é possível enxergar o que pode ser feito hoje para melhorar e para evoluir.

Não confundam tristeza com depressão. Na clínica psicológica, já atendi pacientes que mergulharam profundamente nesse “poço”, precisaram de intervenção psiquiátrica, precisaram de medicamento por um período longo e depois elaborou esse processo e retomou a vida. 

Para as mulheres que já enfrentam o tratamento contra o câncer, recomendo que busquem meditar, busquem referências na crença pessoal (se tiver uma), para lidar com esse processo buscando entender o seu significado, isso ajuda no processo de cura, entender o que está acontecendo, o motivo de estar acontecendo e dos motivos que te impulsionam a superar. 

O tratamento de combate ao câncer é sofrido, mexe nos aspectos biológicos e fazem com que a psique grite por sobrevivência, a paciente oncológica sente fisicamente a necessidade de sobreviver, de lutar contra o câncer que está ali sugando a sua vida, causando medo, stress que podem somatizar, a ideia é encontrar uma alquimia para transmutar o fardo pesado em leve, deixando que a água ferva e evapore, no meio da fervura é possível evaporar toda dor e elaborar todas as questões ligadas ao processo do tratamento.

Um tema delicado e necessário a ser discutido são as pacientes em estado terminais, elas existem. Ao lidar com essas pacientes eu pude acompanhar que a expectativa de cura e de vida foi tão acolhedor quanto o processo de aceitação do tempo final, a paciente vive momentos de muita dor que minam a energia vital e afeta a capacidade de pensar, de se movimentar, é o momento que estimulamos a mentalização, canalizar símbolos, praticar a psicoterapia, conseguir transformar esse momento. Algumas pacientes entram nesse processo para morrer, é dolorido, é sofrido e somente quem vivencia tem dimensão do quanto isso é excruciante, e quando essas pacientes aceitam o processo e aceitam que vão se desligar do físico mas deixaram sua alma, seu legado, o decorrer se torna menos doloroso, o self é muito maior e muito mais profundo e intenso do que a dor. Pacientes já me disseram: eu quero viver, mas sei que vou morrer e estou me preparando para isso, e se desligaram num processo natural e de paz tanto para elas quanto para a família que conseguiram integrar e lidar com o luto de maneira menos dolorida. 

Como pessoa, eu desejo que todas vocês encontrem sua cura, que tenham o melhor tratamento possível, que consigam o apoio necessário.

Como psicólogo, eu espero que a psicologia esteja cada vez mais inserida nos hospitais, institutos, centros de saúde e que a psicoterapia esteja acessível a todos. Bem como os serviços de saúde médica.

Que todas as mulheres possam se conscientizar da importância em manter em dia os exames clínicos, que tratem das questões emocionais antes que elas se convertam em sintomas físicos, que encontrem atendimento de qualidade. 

Cláudio R. Garcia 
CRP 59364/06
Psicólogo Junguiano
Professor de Psicologia em Pós Graduação
Supervisor Psicológico
Palestrante

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