Veja como Bolsonaro agiu, nos bastidores e em público, para atrasar o início da vacinação.
Presidente Jair Bolsonaro durante a apresentação do Planao nacional de Operacionalização da Vacina contra a Covid-19, no Palácio do Planalto. Sérgio Lima/Poder360 16.12.2020
Para erradicar doenças, os infectologistas instruem que é necessário imunização em menor tempo possível (para não dar tempo para surgimento de novas mutações) de no mínimo 70% da população. E partindo do pressuposto de que o Brasil é mais populoso que inúmeros países, logicamente que teríamos que vacinar mais pessoas do que em países europeus, por exemplo.
No Brasil, com população de cerca 211 milhões, para alcançar a imunização de 70% é necessário vacinação de no mínimo 147,7 milhões de pessoas. O Brasil aplicou sua primeira vacina contra a covid-19 em 17 de janeiro de 2021. Passados pouco mais de dois meses e meio, hoje, 22 de março de 2021, apenas 5,5% da população brasileira recebeu uma das duas doses necessárias e apenas 2% estão totalmente imunizados, segundo dados deste domingo (21) levantados pelo consórcio de veículos de imprensa.
Haverá países europeus que irão atingir os 70% antes do Brasil, e mesmo assim não irão vacinar maior número de pessoas que o Brasil, mesmo em cenário de vacinação insuficiente para imunização rebanho. Por isso, é desonestidade (ou ignorância) fazer comparação numérica de vacinados entre os países que possuem populações distintas, cada país terá um esforço diferente para conseguir vacinar os seus 70%.
Veja a seguir fatos e discursos do governo federal antes e depois do início da vacinação no Brasil, desde boicote à propostas, propagação de desinformação até a mudança de narrativas.
1. Acordo Fiocruz-Astrazeneca
No final de junho, o governo federal anuncia o primeiro acordo (e único acordo do governo federal em 2020) de parceria da Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) com a anglo-sueca AstraZeneca, que desenvolveu a vacina contra a covid-19 com a Universidade de Oxford, do Reino Unido. O acordo envolve transferência de tecnologia, para produção nacional.
“Se fala muito da vacina da covid-19. Nós entramos naquele consórcio lá de Oxford. Pelo que tudo indica, vai dar certo e 100 milhões de unidades chegarão para nós. Não é daquele outro país, não, tá ok, pessoal? É de Oxford aí”, disse Jair Bolsonaro em uma live em suas próprias redes sociais em julho de 2020. A vacina “daquele outro país” é a Coronavac, do laboratório chinês Sinovac, com quem o governo de São Paulo tinha fechado um acordo de parceria nos testes e transferência de tecnologia.
2. Recusa de compra da Coronavac
Em julho de 2020, o governo federal recusou a primeira de três ofertas de compra de 160 milhões de doses Coronavac feitas pelo Instituto Butantan, ligado ao governo estadual de São Paulo, governado por João Doria (PSDB). A vacina estava sendo desenvolvida em parceria com o laboratório chinês Sinovac.
3. Recusa de compra da Pfizer
Em julho de 2020, o laboratório americano Pfizer fez a primeira proposta de venda de 70 milhões de doses para o Brasil. Em agosto, depois de várias reuniões com integrantes do governo, incluindo do Ministério da Saúde e da Economia, a Pfizer fez uma proposta formal de fornecimento da vacina ao Brasil. Depois, outras duas propostas são apresentadas. Em carta datada de 12 de setembro, o diretor-executivo mundial da Pfizer, o grego Albert Bourla, escreveu ao presidente Bolsonaro pedindo que se manifestasse com urgência se queria ou não a vacina, considerando “a alta demanda de outros países”. Mas o governo recusou as ofertas. À imprensa, alega que as cláusulas do contrato com a Pfizer seriam abusivas — algo que profissionais acostumados a esse tipo de contrato contestam e que a empresa também apresentou aos demais países onde seu imunizante está sendo usado.
4. Bolsonaro desautoriza acordo de Pazuello e diz que não comprará CoronaVac
Em 20 de outubro de 2020, Eduardo Pazuello anunciou a compra pelo governo federal da vacina Coronavac, da farmacêutica chinesa Sinovac em parceria com o instituto Butantan. Buscando aliviar a própria barra com Bolsonaro, ainda observou: “Quando a gente aperta, no final, a maioria das fábricas nos leva para a China. Por exemplo, a produção do IFA [ingrediente farmacêutico ativo] da AstraZeneca é da China. A produção da substância para o Butantan é da China. A produção do IFA para a vacina texana é da Tailândia. Então, é importante entender o processo como um todo.”
Os governadores saíram satisfeitos e foram correndo dar a notícia em suas redes sociais. O mais animado era Ronaldo Caiado (DEM), de Goiás, que gravou um vídeo no corredor do ministério segurando um frasco de CoronaVac. Doria foi dos últimos a gravar um depoimento para as redes sociais, que declarou “Parabéns, ministro, pela atitude, parabéns pelo posicionamento. O que o Brasil precisa é disso: paz, união, integração e a vacina. A vacina para salvar os brasileiros.” Pronto. Ao ver o vídeo, já se pode imaginar a reação de Bolsonaro.
No dia seguinte, Bolsonaro desautorizou o então ministro da Saúde, referindo-se à Coronavac como “Vachina“, “a vacina chinesa de João Doria” e diz que ela “não será comprada”.
“O povo brasileiro não será cobaia de ninguém. Não se justifica um bilionário aporte financeiro num medicamento que sequer ultrapassou sua fase de testagem. Diante do exposto, minha decisão é a de não adquirir a referida vacina”, disse Jair Bolsonaro, em post nas redes sociais em outubro de 2020, em um momento em que tanto a Coronavac quanto a vacina de Oxford estavam em testes clínicos.
Isso tudo após Bolsonaro ler no Facebook o apelo de um seguidor de 17 anos para que não comprasse a vacina: “Eu só tenho 17 anos e quero ter um futuro, mas sem interferência da ditadura chinesa”, dizia o adolescente. Bolsonaro respondeu, em caixa alta: “NÃO SERÁ COMPRADA.”

5. Torcida contra a Coronavac
Em novembro de 2020, a Anvisa suspendeu por dois dias os testes da Coronavac, até que fosse confirmada a desconexão entre a morte de um voluntário e a vacina. Bolsonaro logo comemorou o episódio como uma vitória pessoal.
“Morte, invalidez, anomalia. Esta é a vacina que o Doria queria obrigar todos os paulistanos a tomá-la. O presidente disse que a vacina jamais poderia ser obrigatória. Mais uma que Jair Bolsonaro ganha”, disse Jair Bolsonaro em comentário nas redes sociais em novembro de 2020.

Não bastasse o absurdo de o presidente comemorar um suposto fracasso de uma vacina tão almejada e necessária para a população, foi constatado que o voluntário havia se suicidado.
6. “Se você virar um jacaré, é problema seu”
No início de dezembro de 2020, Pazuello anuncia em entrevista ao canal CNN Brasil um acordo de intenção de compra de vacinas da Pfizer/BioNTech. Também afirma que é possível que o uso do imunizante no país comece em dezembro de 2020 ou no mês seguinte. Mas as negociações não andaram.
“Lá no contrato da Pfizer, está bem claro: ‘nós [a Pfizer] não nos responsabilizamos por qualquer efeito colateral’. Se você virar um jacaré, é problema seu”, disse Jair Bolsonaro em declaração dada em um evento na Bahia em dezembro de 2020. A frase virou piada, com pessoas dizendo que queriam, sim, se vacinar e virar jacaré.
7. Plano de vacinação impreciso
Também em dezembro de 2020, finalmente após pressão popular nas redes sociais, o Ministério da Saúde apresenta ao STF um documento que prevê a disponibilização para grupos prioritários de 108 milhões de doses, incluindo da Coronavac. O plano, porém, não definia datas para início e término da campanha. Pazuello promete apenas que as vacinas serão distribuídas aos estados em até cinco dias após a autorização da Anvisa para seu uso.
Um grupo formado por 36 Pesquisadores que assessoraram o Ministério da Saúde divulgaram uma nota contestando o fato de aparecerem como signatários do plano, alegando porém não terem sido consultados antes do envio do plano de vacinação, também contestando pontos do documento.
“O grupo técnico assessor foi surpreendido no dia 12 de dezembro de 2020 pelos veículos de imprensa que anunciaram o envio do Plano Nacional de Vacinação da COVID-19 pelo Ministério da Saúde ao STF. Nos causou surpresa e estranheza que o documento no qual constam os nomes dos pesquisadores deste grupo técnico não nos foi apresentado anteriormente e não obteve nossa anuência“, diz trecho da nota divulgada pelo grupo de pesquisadores.
“A vacina vai começar no dia D, na hora H, no Brasil”, disse Eduardo Pazuello, o então ministro da Saúde, em declaração dada no início de janeiro de 2021, ao ser cobrado em Manaus sobre os prazos do plano nacional de imunização.
8. Início da vacinação
A corrida para vacinar antes do governo de São Paulo, aliás, antes de Dória, era uma obsessão de Bolsonaro. Quando percebeu que Doria já estava preparado para iniciar a vacinação, em 15 de janeiro de 2021, Bolsonaro tentou importar do Instituto Serum, da Índia, cerca de 2 milhões de doses da vacina de Oxford.
Entretanto, o governo indiano ainda não havia começado a vacinar sua própria população, era importante que a exportação da vacina fosse feita discretamente para não levantar acusações de descaso com os próprios indianos. Deu tudo errado. O governo federal, mesmo acusando Dória de fazer marketing político com a vacina do Butantan, na ansiedade de faturar politicamente com a chegada da vacina, colocou um adesivo gigante no avião da Azul, que transportaria a vacina, onde se lia “Vacinação – O Brasil imunizado – Somos uma só nação”. A foto saiu na imprensa indiana e o governo indiano adiou a venda.

Em 17 de janeiro de 2021, a Anvisa aprova o uso emergencial das vacinas de Oxford e da Coronavac. No mesmo dia, Doria promoveu um evento em que a primeira dose da Coronavac é aplicada no Brasil. Naquele dia, cerca de 50 países já tinham vacinado quase 18 milhões de pessoas. No dia seguinte, o Ministério da Saúde inicia a distribuição pelos estados das doses dos imunizantes. Alguns governadores e prefeitos começam a vacinar os grupos prioritários no mesmo dia.
“O Ministério da Saúde tem em mãos, neste instante, as vacinas, tanto do Butantan quanto da AstraZeneca. E nós poderíamos, num ato simbólico, ou numa jogada de marketing, iniciar a primeira dose em uma pessoa. Mas em respeito a todos os governadores, prefeitos e todos os brasileiros, o Ministério da Saúde não fará isso. […] Não permitam movimentos políticos e eleitoreiros se aproveitando da vacinação”, disse Eduardo Pazuello, o então ministro da Saúde, mentindo sobre a disponibilidade de vacinas do governo federal (da AstraZeneca) e acusando João Doria de fazer marketing ao promover a aplicação da primeira dose de vacina contra a covid-19 no Brasil.
Nocauteado por uma derrota pública, Bolsonaro ficou calado. Foi incapaz de proferir uma palavra de otimismo sobre o início da vacinação. No dia seguinte, em fala gravada em vídeo por apoiadores, começou com um ato falho. “Apesar da vacina…”, disse, mas corrigiu-se em seguida: “Apesar não, né? A Anvisa aprovou, não tem o que discutir mais.” Depois de passar meses chamado o vacina do Butantan de “vacina chinesa do Doria”, fez a seguinte afirmação: “E a vacina é do Brasil, não é de nenhum governador, não, é do Brasil“, você pode conferir o vídeo aqui.
Felizmente, apesar de Bolsonaro, a vacina é do Brasil!
Em 19 de janeiro de 2021, a Índia anunciou que começaria a enviar as vacinas produzidas no país para uma lista de nações vizinhas e parceiras, mas deixou o Brasil de fora de 1ª lista. Somente no dia 22 de janeiro de 2021, as doses alardeadas por Bolsonaro e Pazuello chegaram da Índia.
9. Aprovação definitiva
No dia 23 de fevereiro de 2021, a Anvisa dá autorização definitiva para o uso e comercialização da vacina da Pfizer no Brasil. É a primeira aprovação do gênero (a Coronavac e a vacina de Oxford tinham apenas autorização emergencial, para uso exclusivo do setor público). Hoje, 22 de março de 2021, 1 mês após a aprovação da vacina da Pfizer no Brasil, as doses ainda não estão sendo aplicados nos brasileiros por falta de planejamento e negociação antecipada.
10. Contratos Atrasados
Em 18 de março de 2021, com 9 meses de atraso desde a primeira proposta da Pfizer, o governo conclui a assinatura dos contratos com a Pfizer e com a farmacêutica belga Janssen (que não tem aprovação da Anvisa, contradizendo a narrativa de que só “compraria com aprovação da Anvisa”) para a compra de 138 milhões de doses de vacinas. O contrato com a Pfizer prevê a entrega de 13,51 milhões de doses no segundo trimestre e de mais 86,48 milhões de doses no terceiro trimestre. O contrato com a Janssen (nesse caso, a vacina é de dose única) prevê 16,9 milhões de doses no terceiro trimestre e 21,1 milhões de doses no último trimestre de 2021.
11. Mudança de narrativa
Ainda em março de 2021, logo após um discurso do ex-presidente e ex-presidiário Luiz Inácio Lula da Silva em que o petista defendeu a vacinação e criticou o governo federal, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), filho do presidente, defendeu a vacinação em suas redes sociais. “Nossa arma é a vacina”, escreve.

O próprio presidente Bolsonaro no dia também fez discurso a favor da vacina contra coronavírus.
“Vacinamos 100% dos idosos acima de 85 anos, entre eles a minha mãe. Até o final do ano, teremos mais de 400 milhões de doses disponíveis aos brasileiros”, afirmou Jair Bolsonaro em evento no Palácio do Planalto, em que além de defender a vacinação também usou máscara juntamente com sua equipe, algo raro.
Na tarde de 21 de março a conta do Twitter da Secom divulga uma thread para tentar limpar a imagem do presidente de maneira falaciosa, com acontecimentos selecionados e fora de contexto, ignorando todos os fatos citados aqui.
A tentativa de tirar a imagem antivacina de Bolsonaro se deu pela concorrência à então presença ameaçadora de Lula. Bolsonaro precisa de um inimigo para sobreviver. É o que também foi apontado em relação à Dória, na reportagem “O sabotador”, publicada pela revista Piauí :
‘Bolsonaro, que vive de olho em 2022, sentiu o movimento. O ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, nunca esqueceu o dia em que viajou para São Paulo para anunciar, ao lado de Doria, a antecipação da campanha de vacinação contra a gripe. […] numa tentativa de reduzir a procura por ambulatórios e hospitais Brasil afora, já em preparação para a pandemia que viria. Mandetta sabia que Bolsonaro não ia gostar da ideia. “Esse Doria fica tirando casquinha dos meus ministros, eu não quero isso, não”, respondeu Bolsonaro, quando consultado por Mandetta sobre o anúncio conjunto. O ministro insistiu: “Mas, presidente, fomos nós que contratamos o Butantan, pagamos 1 bilhão de reais! Não ir para São Paulo vai significar deixar o Doria surfando sozinho.” Bolsonaro cedeu. Só que, durante o evento, ao ver Mandetta e Doria lado a lado, Bolsonaro não gostou […].
Doria também fez sua parte para tornar-se o antagonista preferencial do presidente. No fim de março, no dia seguinte ao pronunciamento em que Bolsonaro disse que a Covid não passava de uma “gripezinha”, ele confrontou o presidente numa reunião virtual com governadores da região Sudeste. “Presidente Bolsonaro, inicio, na condição de cidadão brasileiro e também de governador do estado de São Paulo, lamentando seu pronunciamento de ontem à noite à nação. […] O senhor, como presidente da República, tinha que dar o exemplo. Tem que ser um mandatário para comandar, para dirigir e para liderar o país e não para dividir.” Bolsonaro ficou furioso: “Desde o final das eleições de 2018, vossa excelência assumiu uma postura completamente diferente daquela que teve comigo” […] Desde então, Bolsonaro juntou sua descrença nas medidas de combate ao coronavírus – confinamento, máscara, vacina – com um boicote implacável às iniciativas adotadas pelo governador de São Paulo para frear a pandemia. A principal sabotagem recaiu sobre a vacina.’
Portanto, a postura de Bolsonaro, tanto de boicote à vacinação para agradar seu público negacionista, quanto o de mudança de discurso diante da concorrência política, não são por preocupação pela saúde pública, mas sim para seu próprio capital político, sua preocupação é apenas com as eleições de 2022. Até lá, que Deus nos ajude.
Deixe um comentário